Educação Integral: A escola na (re) significação dos Territórios
Educativos e Tempos Pedagógicos
Flávia Campos Faria
Ana Emilia G. de Castro
O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais
e
de sistemas de coisas superpostas.
O território tem que ser entendido como o território
usado,
não o território em si.
O território usado é o chão mais a identidade.
A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence.
O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência,
das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.
(Milton Santos, 2002, p.10)
O termo território vem do latim, territorium,
que, por sua vez, deriva de terra e significa
pedaço de terra apropriado. Território é o espaço apropriado por um ator, sendo
definido e delimitado por e a partir de relações de poder, em suas múltiplas
dimensões.
Território é produto da intervenção e do
trabalho de um ou mais atores sobre determinado espaço. O território não se
reduz então à sua dimensão material ou concreta; ele é, também, “um campo de
forças, uma teia ou rede de relações sociais” (Raffestin, 1993) que se projetam
no espaço. É construído historicamente, remetendo a diferentes contextos e
escalas: a casa, o escritório, o bairro, a cidade, a região, a nação, o
planeta. Daí que o território seja objeto de análise sob diferentes
perspectivas – geográfica, antropológico-cultural, sociológica, econômica,
jurídico-política, bioecológica, que o percebem, cada qual, segundo suas
abordagens específicas.
O conceito de territorialidade refere-se às
relações entre um indivíduo ou grupo social e seu meio de referência,
manifestando-se nas várias escalas geográficas – uma localidade, uma região ou
um país – e expressando um sentimento de pertencimento e um modo de agir no
âmbito de um dado espaço geográfico. Territorialidade não é, por outro lado,
sinônimo de raízes territoriais, já que é transportável e é dinâmica, como no
caso de migrantes que se apropriam de novos territórios e reconstituem suas
identidades territoriais em novos espaços.
A territorialidade reflete, então, o vivido territorial em toda sua
abrangência e em suas múltiplas
dimensões – cultural, política, econômica e social. “Os homens ‘vivem’, ao
mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de
um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas”, entendendo-se que
“todas são relações de poder, visto que há interação entre os atores que
procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais”. (RAFFESTIN,
1993, p.158)
As práticas sociais são moldadas na relação
com seu meio de referência, adquirindo contornos particulares em áreas
geográficas específicas e articulando-se nas diferentes escalas. “A partir do
espaço geográfico, cria-se uma solidariedade orgânica, o conjunto sendo formado
pela existência comum dos agentes exercendo-se sobre um território comum”
(Milton Santos, 2000, p.109-110). Do mesmo modo, tais práticas moldam os
territórios, imprimindo-lhes as marcas de suas decisões e intervenções sobre os
mesmos.
Todo desenho territorial é uma construção
subjetiva, ou seja, depende da ação de um “sujeito” que institui o território.
Essa construção subjetiva pode ser exógena (feita a partir de agentes externos)
ou endógena (feita a partir dos agentes locais).
Território
“é o espaço
da prática. Por um lado é o produto da prática espacial: inclui a apropriação
efetiva ou simbólica de um espaço, implica na noção de limite -
componente de qualquer prática - manifestando a intenção de poder sobre
uma porção precisa do espaço. Por outro lado, é também um produto usado,
vivido pelos atores, utilizado como meio para sua prática. A
territorialidade humana é uma relação com o espaço que tenta afetar,
influenciar ou controlar ações através do controle do território. É a face
vivida e materializada do poder”. (Subsídios para definição da PNOT –
Política Nacional de Ordenamento Territorial, 2006:13-14)
A
relação território educativo, intersetorialidade e tempos pedagógicos
Segundo
a pesquisadora Dirce koga (2003. p25-6) os processos de descentralização e de
gestão intersetorial têm sido cada vez mais associados ao conceito de território que, permite uma nova
abordagem do planejamento político:
Pensar a política pública a partir do território
exige também exercício de revisita à história, ao cotidiano, ao universo
cultural da população que nesse
território, se o consideramos para além do espaço físico, isto é, como toda a
gama de relações estabelecidas entre seus moradores, que de fato o constroem e
reconstroem. Partir do local não significa uma negação das questões universais
ou de uma perspectiva mais totalizante sobre a realidade.
Ao
ter no território o foco da ação, os agentes públicos tendem a formular
políticas com base no efetivo conhecimento da realidade e não sob a orientação
exclusiva de concepções teóricas generalizantes. Além disso, a ação territorial
evidencia a diversidade da população e dos lugares em que vivem. Por isso é
necessário definir metas e intervenções que considerem as singularidades e
demandas específicas de contingentes da população, especialmente das crianças e
adolescentes e suas famílias.
Cada
território apresenta incontáveis potenciais educativos que são muitas
vezes invisíveis às pessoas. Na
perspectiva de educação integral de crianças e adolescentes, é fundamental
mobilizar e articular redes sociais e investir na organização e disseminação de
informação, assim como na produção de sentido de pertencimento nos territórios.
Quando o sentimento de pertencimento gerado pela relação de aprendizagens entre
diversas gerações resulta numa ação coletiva, temos uma “comunidade de
aprendizagem”, tal como definiu a educadora equatoriana Rosa Maria Torres
(2003, p.83):
“Uma comunidade de aprendizagem é uma comunidade
humana organizada que constrói um projeto educativo e cultura própria, para
educar a si própria, suas crianças, jovens e adultos, graças a um esforço
endógeno, cooperativo e solidário, baseado em um diagnóstico não apenas de suas
carências, mas de suas forças para superar essas carências”.
Ao
reconhecer a diversidade de agentes envolvidos no processo educativo, o desafio metodológico consiste em criar
modos de acessar, conhecer e potencializar a comunidade de aprendizagem das
crianças e adolescentes.
O
Programa Mais Educação propõe pensarmos e praticarmos a Educação
Integral a partir do binômio educação–território, considerando a
formação dos sujeitos da educação como
inseparável das relações e transformações ocorridas no ambiente, a partir do
entendimento do caráter territorial dos processos educacionais na escola e na comunidade/cidade.
(Programa Mais Educação – Série Mais Educação, Cadernos Pedagógicos: Territórios Educativos para a Educação
Integral: a reinvenção pedagógica dos espaços e
tempos da escola e da cidade, 2010)
O conceito de Território
Educativo remete a uma concepção
abrangente de educação, em que o processo educativo confunde-se com um processo
amplo e multiforme de socialização. A partir deste
princípio/conceito, o Programa Mais Educação qualifica o território como
educativo convertendo-o, assim, em território intencionalmente educador.
Há uma
pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. (Paulo Freire,
1996, p.50)
Ou
seja, parte-se do pressuposto de considerar este espaço/território, não
apenas, como uma mera estrutura física – grande/pequeno, feio/bonito... mas
como lugar de vida, de relações. Espaço de vivência, convivência, lazer,
trabalho ... Não como algo passivo,
continente, mas como conteúdo e sujeito destas experiências, que as qualifica,
interferindo na vida de quem os ocupam.
Os
tempos pedagógicos se entrelaçam a esta visão de território educativo que, por
sua vez, se articulam à dinâmica social e cultural da comunidade/cidade e
desafiam o cotidiano escolar a (re) significar sempre mais os processos
formativos, os diálogos, as aprendizagens. Como afirma Miguel Arroyo, as escolas não são um espaço tranquilo onde
verdades verdadeiras são repassadas, mas, questionadas. Questões que vêm da
dinâmica sócio cultural, das ciências, da política, dos movimentos sociais, do
movimento docente e também dos educandos. (ARROYO, 2007)
Os
tempos da Educação Integral são, portanto, tempos inquietos. Eles questionam,
investigam, criam grupos de estudos e de pesquisas, colocam, em comum, a
problemática vivida, a formação de redes de aprendizes, em meio a um refazer
diário, forjado na totalidade das
dimensões humanas dos múltiplos sujeitos (DAYRELL, 2001).
São
tempos que se articulam aos espaços pedagógicos das trocas de saberes, da
construção dos conhecimentos, da criticidade, das vivências dos valores éticos,
do exercício de cidadania. Tempos que instigam uma formação contextualizada,
realizada em meio a um movimento dinâmico e amplo de experimentação, de
articulações, de relações multiculturais.
Tempos
que aproximam, cada vez mais, educandos e educadores à dinâmica da escola/da
comunidade/da cidade/do mundo, sobretudo porque apostam nas pessoas, nas
articulações entre as salas de aula, entre os turnos, entre as áreas de
conhecimentos, entre os diversos espaços de convivência, entre os ciclos de
vida e de aprendizagens.
Tempos
pedagógicos que se organizam a partir das singularidades dos educandos (seus
interesses, vivências, linguagens, curiosidades), no exercício da co-autoria
(fala, postura investigativa, capacidade para propor/planejar/construir regras
coletivas de convivência), em um permanente pensar, sentir, fazer que fomenta a
imaginação, a criatividade, a criticidade. (FARIA, 2011).
Tempos
que reconhecem os direitos que os sujeitos têm de aprender, de raciocinar, de
criticar, de pensar, de interpretar o mundo, de recriar a sua própria
existência, e por isso os constituem diferentes, com interrogações diferentes,
com sonhos largos, com projetos promissores. (FREIRE, 1996)
Tempos
de possibilidades concretas para fortalecer o clima
de confiança, de corresponsabilidade, de compromisso com a comunidade e suas
raízes identitárias; de investir em projetos didáticos que favoreçam as
trocas multiculturais, o aprendizado significativo, o respeito aos diferentes
ritmos das crianças, da contextualização dos problemas locais, presentes nas
falas, nos olhares, na vivência lúdica das artes nas suas diferentes linguagens
(visual, musical, literária, corporal); na sensibilização da comunidade para
perseguir a ética do cuidado e a ter um olhar mais atento às sensibilidades
próprias, do outro, da coletividade.
Tempos de incentivo aos educandos
para soltarem a voz no palco da escola/da vida, conhecerem outros ambientes,
outros contextos, novas interações, novas regras, novas maneiras de se
comportar, de compartilhar a alegria, de recriar a participação, de compreender
o “erro” como integrante do processo
de aprendizagem. (CECCON, 2009)
Tempos que não são marcados pelo relógio, pelo
calendário anual, pelos dias letivos, mas essencialmente, pela dimensão
cotidiana que a prática pedagógica consegue problematizar/realizar de forma
significativa/permanente nos territórios educativos, imprimindo, na cultura
local e na memória coletiva da comunidade escolar, seu traçado histórico com
compromisso, alegria e solidariedade.
Referências
ARROYO,
Miguel. O
que ensinar, o que aprender e em que tempo - Conferência proferida no XIII Encontro de Formação dos Educadores da
Rede Municipal de Olinda, Olinda, texto digitalizado, 2007.
CECCON, J. P. O castelo das crianças cidadãs. Centro
Cultural das Crianças. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Rio
de Janeiro: CECIPE, 2009.
DAYRELL,
Juarez. (Org.). Múltiplos olhares sobre
educação e cultura. Belo Horizonte: Universitária da UFMG, 2001.
FARIA, Flávia.
Processos Participativos e o “Programa
Participação Criança” na Rede Municipal de Educação de Olinda (2001-2008): uma
experiência de co-autoria infantil. 147f. Dissertação (Mestrado em Educação)
- Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Educação. Universidade
Federal de Pernambuco. Recife: UFPE, 2011.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia do Oprimido. Saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
KOGA,
Dirce. As medidas da cidade, São Paulo: Cortez, 2003.
Programa
Mais Educação – Série Mais Educação, Cadernos Pedagógicos: Territórios Educativos para a Educação
Integral: a reinvenção pedagógica dos espaços e
tempos da escola e da cidade, 2010.
SANTOS, M. Por
uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio
de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.
SANTOS, M. Território
e Dinheiro.
In: Território e Territórios. Niterói: Programa de Pós Graduação em Geografia
– PPGEO-UFF/AGB, 2002.
TORRES, Rosa M. A
educação em função do desenvolvimento local e da aprendizagem. In: CENPEC.
Muitos lugares para aprender. São Paulo: Cenpec; Fundação Itaú Social; Unicef,
2003.
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