quinta-feira, 12 de julho de 2012


Educação Integral: A escola na (re) significação dos Territórios Educativos e Tempos Pedagógicos



Flávia Campos Faria
Ana Emilia G. de Castro


                                               O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e
de sistemas de coisas superpostas.
O território tem que ser entendido como o território usado,
não o território em si.
O território usado é o chão mais a identidade.
A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence.
O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência,
das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.
(Milton Santos, 2002, p.10)

O termo território vem do latim, territorium, que, por sua vez, deriva de terra e significa pedaço de terra apropriado. Território é o espaço apropriado por um ator, sendo definido e delimitado por e a partir de relações de poder, em suas múltiplas dimensões.

Território é produto da intervenção e do trabalho de um ou mais atores sobre determinado espaço. O território não se reduz então à sua dimensão material ou concreta; ele é, também, “um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais” (Raffestin, 1993) que se projetam no espaço. É construído historicamente, remetendo a diferentes contextos e escalas: a casa, o escritório, o bairro, a cidade, a região, a nação, o planeta. Daí que o território seja objeto de análise sob diferentes perspectivas – geográfica, antropológico-cultural, sociológica, econômica, jurídico-política, bioecológica, que o percebem, cada qual, segundo suas abordagens específicas.

O conceito de territorialidade refere-se às relações entre um indivíduo ou grupo social e seu meio de referência, manifestando-se nas várias escalas geográficas – uma localidade, uma região ou um país – e expressando um sentimento de pertencimento e um modo de agir no âmbito de um dado espaço geográfico. Territorialidade não é, por outro lado, sinônimo de raízes territoriais, já que é transportável e é dinâmica, como no caso de migrantes que se apropriam de novos territórios e reconstituem suas identidades territoriais em novos espaços.

A territorialidade reflete, então, o vivido territorial em toda sua abrangência e em suas múltiplas dimensões – cultural, política, econômica e social. “Os homens ‘vivem’, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas”, entendendo-se que “todas são relações de poder, visto que há interação entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais”. (RAFFESTIN, 1993, p.158)

As práticas sociais são moldadas na relação com seu meio de referência, adquirindo contornos particulares em áreas geográficas específicas e articulando-se nas diferentes escalas. “A partir do espaço geográfico, cria-se uma solidariedade orgânica, o conjunto sendo formado pela existência comum dos agentes exercendo-se sobre um território comum” (Milton Santos, 2000, p.109-110). Do mesmo modo, tais práticas moldam os territórios, imprimindo-lhes as marcas de suas decisões e intervenções sobre os mesmos.

Todo desenho territorial é uma construção subjetiva, ou seja, depende da ação de um “sujeito” que institui o território. Essa construção subjetiva pode ser exógena (feita a partir de agentes externos) ou endógena (feita a partir dos agentes locais).

Território “é o espaço da prática. Por um lado é o produto da prática espacial: inclui a apropriação efetiva ou simbólica de um espaço, implica na noção de limite - componente de qualquer prática - manifestando a intenção de poder sobre uma porção precisa do espaço. Por outro lado, é também um produto usado, vivido pelos atores, utilizado como meio para sua prática. A territorialidade humana é uma relação com o espaço que tenta afetar, influenciar ou controlar ações através do controle do território. É a face vivida e materializada do poder”. (Subsídios para definição da PNOT – Política Nacional de Ordenamento Territorial, 2006:13-14)


A relação território educativo, intersetorialidade e tempos pedagógicos
Segundo a pesquisadora Dirce koga (2003. p25-6) os processos de descentralização e de gestão intersetorial têm sido cada vez mais associados ao conceito de território que, permite uma nova abordagem do planejamento político:

Pensar a política pública a partir do território exige também exercício de revisita à história, ao cotidiano, ao universo cultural da população que nesse território, se o consideramos para além do espaço físico, isto é, como toda a gama de relações estabelecidas entre seus moradores, que de fato o constroem e reconstroem. Partir do local não significa uma negação das questões universais ou de uma perspectiva mais totalizante sobre a realidade.

Ao ter no território o foco da ação, os agentes públicos tendem a formular políticas com base no efetivo conhecimento da realidade e não sob a orientação exclusiva de concepções teóricas generalizantes. Além disso, a ação territorial evidencia a diversidade da população e dos lugares em que vivem. Por isso é necessário definir metas e intervenções que considerem as singularidades e demandas específicas de contingentes da população, especialmente das crianças e adolescentes e suas famílias.

Cada território apresenta incontáveis potenciais educativos que são muitas vezes invisíveis às pessoas. Na perspectiva de educação integral de crianças e adolescentes, é fundamental mobilizar e articular redes sociais e investir na organização e disseminação de informação, assim como na produção de sentido de pertencimento nos territórios. Quando o sentimento de pertencimento gerado pela relação de aprendizagens entre diversas gerações resulta numa ação coletiva, temos uma “comunidade de aprendizagem”, tal como definiu a educadora equatoriana Rosa Maria Torres (2003, p.83):


“Uma comunidade de aprendizagem é uma comunidade humana organizada que constrói um projeto educativo e cultura própria, para educar a si própria, suas crianças, jovens e adultos, graças a um esforço endógeno, cooperativo e solidário, baseado em um diagnóstico não apenas de suas carências, mas de suas forças para superar essas carências”.

Ao reconhecer a diversidade de agentes envolvidos no processo educativo, o desafio metodológico consiste em criar modos de acessar, conhecer e potencializar a comunidade de aprendizagem das crianças e adolescentes.

O Programa Mais Educação propõe pensarmos e praticarmos a Educação Integral a partir do binômio educação–território, considerando a formação dos sujeitos da educação como inseparável das relações e transformações ocorridas no ambiente, a partir do entendimento do caráter territorial dos processos educacionais na escola e na comunidade/cidade. (Programa Mais Educação – Série Mais Educação, Cadernos Pedagógicos: Territórios Educativos para a Educação Integral: a reinvenção pedagógica dos espaços e tempos da escola e da cidade, 2010)

O conceito de Território Educativo remete a uma concepção abrangente de educação, em que o processo educativo confunde-se com um processo amplo e multiforme de socialização. A partir deste princípio/conceito, o Programa Mais Educação qualifica o território como educativo convertendo-o, assim, em território intencionalmente educador.


Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. (Paulo Freire, 1996, p.50)

Ou seja, parte-se do pressuposto de considerar este espaço/território, não apenas, como uma mera estrutura física – grande/pequeno, feio/bonito... mas como lugar de vida, de relações. Espaço de vivência, convivência, lazer, trabalho ...  Não como algo passivo, continente, mas como conteúdo e sujeito destas experiências, que as qualifica, interferindo na vida de quem os ocupam.

Os tempos pedagógicos se entrelaçam a esta visão de território educativo que, por sua vez, se articulam à dinâmica social e cultural da comunidade/cidade e desafiam o cotidiano escolar a (re) significar sempre mais os processos formativos, os diálogos, as aprendizagens. Como afirma Miguel Arroyo, as escolas não são um espaço tranquilo onde verdades verdadeiras são repassadas, mas, questionadas. Questões que vêm da dinâmica sócio cultural, das ciências, da política, dos movimentos sociais, do movimento docente e também dos educandos. (ARROYO, 2007)                                                          

Os tempos da Educação Integral são, portanto, tempos inquietos. Eles questionam, investigam, criam grupos de estudos e de pesquisas, colocam, em comum, a problemática vivida, a formação de redes de aprendizes, em meio a um refazer diário, forjado na totalidade das dimensões humanas dos múltiplos sujeitos (DAYRELL, 2001).

São tempos que se articulam aos espaços pedagógicos das trocas de saberes, da construção dos conhecimentos, da criticidade, das vivências dos valores éticos, do exercício de cidadania. Tempos que instigam uma formação contextualizada, realizada em meio a um movimento dinâmico e amplo de experimentação, de articulações, de relações multiculturais.

Tempos que aproximam, cada vez mais, educandos e educadores à dinâmica da escola/da comunidade/da cidade/do mundo, sobretudo porque apostam nas pessoas, nas articulações entre as salas de aula, entre os turnos, entre as áreas de conhecimentos, entre os diversos espaços de convivência, entre os ciclos de vida e de aprendizagens.

Tempos pedagógicos que se organizam a partir das singularidades dos educandos (seus interesses, vivências, linguagens, curiosidades), no exercício da co-autoria (fala, postura investigativa, capacidade para propor/planejar/construir regras coletivas de convivência), em um permanente pensar, sentir, fazer que fomenta a imaginação, a criatividade, a criticidade. (FARIA, 2011).

Tempos que reconhecem os direitos que os sujeitos têm de aprender, de raciocinar, de criticar, de pensar, de interpretar o mundo, de recriar a sua própria existência, e por isso os constituem diferentes, com interrogações diferentes, com sonhos largos, com projetos promissores. (FREIRE, 1996)

Tempos de possibilidades concretas para fortalecer o clima de confiança, de corresponsabilidade, de compromisso com a comunidade e suas raízes identitárias; de investir em projetos didáticos que favoreçam as trocas multiculturais, o aprendizado significativo, o respeito aos diferentes ritmos das crianças, da contextualização dos problemas locais, presentes nas falas, nos olhares, na vivência lúdica das artes nas suas diferentes linguagens (visual, musical, literária, corporal); na sensibilização da comunidade para perseguir a ética do cuidado e a ter um olhar mais atento às sensibilidades próprias, do outro, da coletividade.

Tempos de incentivo aos educandos para soltarem a voz no palco da escola/da vida, conhecerem outros ambientes, outros contextos, novas interações, novas regras, novas maneiras de se comportar, de compartilhar a alegria, de recriar a participação, de compreender o “erro” como integrante do processo de aprendizagem. (CECCON, 2009)

Tempos que não são marcados pelo relógio, pelo calendário anual, pelos dias letivos, mas essencialmente, pela dimensão cotidiana que a prática pedagógica consegue problematizar/realizar de forma significativa/permanente nos territórios educativos, imprimindo, na cultura local e na memória coletiva da comunidade escolar, seu traçado histórico com compromisso, alegria e solidariedade.


Referências

ARROYO, Miguel. O que ensinar, o que aprender e em que tempo - Conferência proferida no XIII Encontro de Formação dos Educadores da Rede Municipal de Olinda, Olinda, texto digitalizado, 2007.


CECCON, J. P. O castelo das crianças cidadãs. Centro Cultural das Crianças. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Rio de Janeiro: CECIPE, 2009.


DAYRELL, Juarez. (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Universitária da UFMG, 2001.


FARIA, Flávia. Processos Participativos e o “Programa Participação Criança” na Rede Municipal de Educação de Olinda (2001-2008): uma experiência de co-autoria infantil. 147f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Educação. Universidade Federal de Pernambuco. Recife: UFPE, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

KOGA, Dirce. As medidas da cidade, São Paulo: Cortez, 2003.
Programa Mais Educação – Série Mais Educação, Cadernos Pedagógicos: Territórios Educativos para a Educação Integral: a reinvenção pedagógica dos espaços e tempos da escola e da cidade, 2010.

SANTOS, M. Por uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência

universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.

SANTOS, M. Território e Dinheiro. In: Território e Territórios. Niterói: Programa de Pós Graduação em Geografia – PPGEO-UFF/AGB, 2002.

TORRES, Rosa M. A educação em função do desenvolvimento local e da aprendizagem. In: CENPEC. Muitos lugares para aprender. São Paulo: Cenpec; Fundação Itaú Social; Unicef, 2003.

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